terça-feira, 26 de março de 2013

SANTO INÁCIO

Por Cláudia Maria Madureira de Pinho

            Maritacas turbulentas agitam a calma, em revoada, na direção do flamboyant vermelho do jardim. Tudo mais é quieto. O vento não bate, mal se vê a fumaça do fogão a lenha saindo da chaminé da cozinha. A velha fazenda impõe um respeito, como num adro, do alto das escadarias, que os séculos que passam não conseguem arrefecer. Nada mais da autoridade dos antigos senhores do café embora ela, a casa, continue a refleti-la.

            Idalina cozinha no compasso da lenha do fogão das refeições do tempo que já não é, não corre, impregnado de histórias nas paredes, nos móveis, nos cristais, nos porta-retratos. Fotos amarelas dos ancestrais testemunham, fantasmas silentes, poucas transformações. Livros, revistas, mapas se vestem de poeira. Há quanto tempo?

            Uma televisão ligada revela as mudanças, mas a rotina de décadas não se abala com os sons irradiados. Apenas eles destoam no cenário imutável da Fazenda Santo Inácio e espantam, em seu monólogo estridente, as viuvinhas do pátio, por onde circula Idalina, entre a cozinha, a mesa de jantar e as camas por fazer. Seus passos arrastados nos chinelos desfilam frente à enseada de Botafogo pintada na parede da sala de jantar. No centro do mural ergue-se o Corcovado, desprovido de seu Cristo, emoldurando as poucas casas a beira-mar no Rio do século XIX. A força do Império... Quanto tempo de distância a separar a capital da fazenda? Um dia? Mais?

            Nenhuma pressa é possível. A vida cumpre seu tempo natural, indiferente às exigências do século XXI, que não aconteceu em Santo Inácio, como talvez nem o XX. O Brasil do Império e dos descendentes do Visconde do Imbé impõe seu ritmo. Sou uma invasora, ciente da minha audácia, vendo na TV notícias duras, que assustam as viuvinhas, desafiando a paz que não sei desfrutar. As camélias caídas no pátio me censuram. Teria sido eu, com os ruídos provocados, quem as fez cair?

            Timidamente, dirijo-me aos livros, retiro um deles na estante, limpo a poeira com a barra da blusa e tento me adequar. Lembro que pequena sonhava ser fazendeira, pintora ou escritora quando crescesse. Não cresci muito e não sou nada disso. Uma sensação de inutilidade me conduz as mãos ao botão que desliga a TV.

            Nem tudo está perdido. Uma das viuvinhas faz uma visita, pousando no galho que se pendura em camélias frente às janelas do casarão. Abro o livro e mergulho nas mesmas histórias que distraíram os Moraes ao longo de gerações. Machado de Assis me conduz, com palavras melódicas, a um mundo que não pertence.

segunda-feira, 4 de março de 2013

Memórias de um Beta


Por Juliana Castro Cardoso


Sou de uma espécie conhecida, comum. Dizem que vivo sem muitos cuidados, mas o interessante é que vários como eu morrem em pouco tempo, exatamente por falta de tais cuidados.

Não incomodamos muito, apenas pedimos que cuidem da nossa alimentação, que esta seja servida em horários regulares e diurnos, que nosso ambiente seja limpo e tenha temperatura adequada à nossa espécie. Só! Acho que isso não é pedir muito a quem nos quer como companhia, você concorda?

Por falar em companhia, não gostamos de viver com outros peixes e temos personalidade fortíssima. É certo que não falamos, mas sempre damos um jeito de nos comunicar com as outras espécies, até mesmo com os humanos.

Vou contar minha história: Saí de uma feira livre, ensacado, e fui dado de presente a uma pequena menina. Pobre de mim! O que eu poderia dar de alegria àquela criança?

Não falo, não vou ao encontro do dono, não corro atrás de bolas, não sou fofinho como os gatos, não canto como os passarinhos. Pareço um sujeito meio antipático. Mas não é isso, apenas gosto de ficar na minha.

Bem, continuando..., saí de um furdunço, quente pra caramba e fui parar num lugar calmo e muito frio.

“Nossa! Este lugar tem mais a ver com o meu estilo!” Pensei.
O único barulho, ali, era da criança que, por vezes, se ausentava. O lugar era perfeito para um sujeito como eu.

Quem cuidava de mim era uma mulher, que todas as manhãs me cumprimentava:

“Bom dia Marlin! Fez muito frio essa noite? Vou ver no termômetro.”

“Nossa! Coitado, deve estar morrendo de frio. Vou colocar água quente pra você meu querido!”

“E agora? Tá mais animadinho, né?”

​Chic, chic, chic ... Era o barulho do saquinho da ração. Ela sempre o sacudia quando queria me chamar para comer e, depois, colocava, uma a uma na água, as seis bolinhas de ração da minha dieta. Fazia isso duas vezes ao dia.
​Ah! Como era bom...

Estava feliz naquele lugar. Era bem tratado, querido e respeitado. A criança brincava comigo todo dia, mas de longe, sem bater no vidro da minha casa, senão eu podia me assustar, como ensinava a mulher.
Que vidão!!

Eu só não gostava muito quando ela atrasava o horário da segunda refeição. Não faz bem comer muito tarde, dizem que pode dar pesadelos.

“ Marlin, desculpa mas não consegui te dar comida mais cedo."
“Ah! Meu Deus, você não quer comer?! Tá tudo bem?”
“Amor, vem ver o que você acha.”
“Será que tá com fungos?”
“Dizem que eles não duram nada, mas eu cuido tanto dele...”
“ Poxa, a Maricota vai ficar decepcionada se ele morrer.

“Calma, querida! vai ver ele ta só com frio”, dizia o marido.

Que nada, eu não queria era comer àquela hora. Onde já se viu, servir o jantar depois das dez. Não comia e pronto!

Com o tempo ela percebeu que eu não gostava de comer tarde da noite e achou uma graça. Depois, foi descobrindo o jeito que eu me comunicava. Era só colocar a comida na água que eu ia todo faceiro até a superfície. Às vezes, ela fingia que ia colocar minha comida, só para eu me aproximar. Já eu, fingia que acreditava só para chegar bem pertinho dela!
​A gente se dava muito bem!

Até que um dia, no meu aniversário de dois anos, ganhei de presente um castelinho de cimento para enfeitar minha casa. À primeira vista, ele era bem interessante. Lá dentro era escurinho, perfeito pra dormir até mais tarde!

​Gostava tanto que não queria mais sair de lá.
Só que, dali em diante, eu fui ficando meio esquisito, não era mais faceiro como antes.
Ela logo percebeu e comentou com o seu marido:

“Marlin tá tão estranho!"

“Esse castelinho deve estar deixando ele deprimido”, respondeu o marido.

“Então, vamos retirá-lo!” Disse ela.

Mas eu não melhorei e, assim, me despedi daquela vida boa. Parti, deixando saudades...




sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Viagens

Por Edna Bueno




Foi em 1984, mês de agosto, pouco mais de um ano da morte de meu pai. Férias. Queria andar por larguezas, brisa e asa, e o Pantanal Matogrossense me pareceu o destino acertado. Como bilhete de viagem, a vontade de estar só; por aí me esgueirei.

Minha mãe sugeriu uma excursão de trem. Numa excursão ninguém fica só, argumentei, mas aquele lugar, ela disse, jacarés e feras, você sabe... Acabei concordando; sempre poderia falar pouco, deixar os olhos na paisagem. Cerrado, terra vermelha e planaltos, árvores baixas, retorcidas, o movimento do trem.

Partimos da Estação Leopoldina, do Rio à cidade de São Paulo. Trem noturno. Na plataforma, distribuídas as cabines pelos excursionistas, ganhei a companhia de outra moça, olhando assim de idade parecida. Eu levava uma mala grande; a moça, uma pequena.
Parênteses: minha mãe, que trabalhava com turismo, tinha prometido cabine individual, quarto individual nos hotéis, e eu me senti fulminada nessa partida.

O trem luxuoso para São Paulo servia café da manhã em um vagão com mesas enfeitadas por vasos de flores amarelas, as toalhas brancas. O trem pelo Mato Grosso era mambembe, toalhas coloridas nas mesas do vagão restaurante. Eu e a moça, mais um garoto surfista que certamente estava ali na onda errada, como eu, pretensamente sozinho pelo Pantanal, mais um senhor aposentado: essa minha turma. Com eles repartia mesa e conversas, festejava paisagem e espantos. Quatro pessoas se encontravam, encontros para lá de improváveis. O resto da excursão era de casais, gente mais velha.

Trilhos na ponte sobre o rio Paraná, entre São Paulo e Mato Grosso do Sul. Lindo o sol vermelhão que se punha do outro lado.

Em Corumbá, a temperatura ia do mais quente ao mais frio de um dia para o outro. Na mala, roupas para todo clima, cores combinando. Tênis, sandália, cinto para um toque diferente, lenço para enrolar em volta do pescoço, brincos para variar, pulseiras, montes de etceteras. A mala da minha companheira, pequena. Meus cílios com rímel, o rosto dela sem pintura. Simplicidade impressionante. Um dia conversamos sobre idade e profissão, rimos: as duas de Escorpião, primeiro decanato, ela do final de outubro e eu do começo de novembro, nascidas no mesmo ano, oito dias de diferença; ela arquiteta, eu engenheira. Então, parecenças.
Também pegamos alguns ônibus, pequenos trajetos. E pusemos os pés numa cidadezinha fronteira da Bolívia, onde comprei uma mala de pano, estampa andina, e um poncho. De volta ao hotel, separei o que entendi realmente precisar e coloquei na mala nova. A antiga, despachei para meu endereço no Rio. Veio de avião, pela Varig, trazendo o excesso. E ficou tudo mais fácil, mais leve.

Num trajeto de ônibus conversamos sobre família, pai e mãe. Eu, filha do segundo casamento do meu pai; ela, criada pela mãe separada. Falamos de irmãos. Outro dia, ao sairmos para jantar, a carteira de identidade dela caiu, peguei, entreguei, peraí, esse sobrenome: seu pai irmão da primeira mulher do meu pai, ela prima irmã dos meus irmãos – os chamados meio-irmãos, mas irmãos nunca são pela metade.

Tal espanto dividimos com o resto da turma, o garoto surfista e o senhor aposentado. Pessoas, como fugir delas? O Pantanal, os jacarés, piranhas, tuiuiús, as árvores, o sol vermelho do Mato Grosso, as pessoas. O museu em Campo Grande. O templo budista em Baurú, na volta; o circo em Baurú, o elefante chamado César.

Encontrei minha companheira de viagem no Rio umas poucas vezes, prolongando uma amizade de viajantes. Reservada, meio que misteriosa; simples. Fomos à praia com o amigo surfista. Fotos, risos, água de coco. Ela foi ao lançamento de uma antologia de poemas de que participei com amigos de uma oficina; na antiga livraria Dazibao, Visconde de Pirajá, Ipanema. Pediu para não contar para meus irmãos quem era.

Anos atrás a encontrei por acaso. Parou de carro com uma amiga diante do restaurante A Floresta, na Floresta da Tijuca. Fabio, meu filho, era pequeno e brincava; eu me ocupava dele enquanto o Rui, marido, tocava violão num canto do estacionamento. Um de nossos passeios preferidos, casal com criança, eu que já havia largado a engenharia e andava me enveredando pela literatura. Sim, eu mais leve e feliz, mas ainda com blush e rímel. Ela não, igual: rosto lavado, voz grave e bonita. Bom vê-la; depois o carro partindo, entrando na paisagem de neblina, ela acenando.

Essa foi minha única viagem em excursão; tudo programado, mas – viva! – surpreendendo. Talvez isso faça parte d
as viagens: lugares, pessoas, surpresas
Hoje tenho uma grande vontade de me aventurar pelas terras das Mil e uma noites. Ou por Santa Rita da Jacutinga, doida para conhecer as cachoeiras do lugar. Talvez pela sonoridade do nome, Jacutinga, bom de falar. Que bilhetes para esses destinos? Que trilhos? Que descaminhos? A mala, sei, aprendi: simples e leve.


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domingo, 3 de fevereiro de 2013

A casa da minha memória





Por Bárbara Anaissi


O aroma de um bolo de chocolate assando. Purê com carne moída. Uma varanda cheia de plantas que era o meu Jardim Botânico. Uma casa de bonecas pendurada no teto e feita com caixote de feira e corda. Meu primeiro cachorro. A risada do meu tio. Uma estante que já passou por muitas casas e me acompanha até hoje. Programa do Chacrinha na TV com minha avó. O cheiro de lavanda do meu avô. A voz da minha mãe.

Bem pequena eu sentava no colo do vô para ouvir suas invenciones. Eu não entendia quase nada, mas mergulhava fascinada naquele imaginário. À noite, quando chegava do trabalho, minha mãe me colocava na cama misturando histórias que sabia de cor. Às vezes o cansaço vencia a delicadeza materna e eu, ainda bem acordada, reclamava: “Mãe, a Cuca não corre atrás da Chapeuzinho Vermelho!”.

Estas são as lembranças da minha primeira casa. Na verdade, um apartamento imenso aos meus olhos de criança. Morei lá até os 10 anos, mas não nasci lá. Mas não me lembro de nenhum outro lar antes deste. 

Rua General Polidoro, Botafogo. Um prédio de três blocos e dois andares, sem elevador. A escada grande e larga era o local preferido de brincadeiras. E o corredor sempre bem encerado que unia os três blocos também. Meu joelho não me deixa esquecer este corredor. Carrego até hoje uma cicatriz das corridas disputadas com os amigos.

Ao lembrar aquela época vejo com uma nitidez impressionante a menina que fui. Os cabelos ainda lisos batiam no ombro, um conjunto de short e blusa amarelo era o preferido. Susi e Beto eram meus companheiros de brincadeiras e Monteiro Lobato aparecia antes do meu sono.

A menina se debruçava todas as noites na janela aguardando a mãe chegar do trabalho. De manhã era o tio quem chegava trazendo o pão quentinho. A prima, já adolescente, chegava de madrugada da diversão. Todos chegavam e a menina e a avó esperavam.

Aos domingos a família preenchia a cozinha para fazer arroz com lentilhas, kibes, esfihas. E o avô ensinava palavrões em árabe para os netos. E contava a história de seu pai vindo do Líbano.

Tios e tias, primos e primas, avô e avó, mãe. Família, risadas, carinho, leituras e brincadeiras. Essa casa traz um tempo bom...
            

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Um mundo à parte






Por Claudia Maria Madureira

A primeira imagem era a do Cristo enorme, martirizado na cruz, tomando toda a altura do pé direito triplo do salão de entrada do convento. A luz vinha difusa, de janelas junto ao teto, soltando feixes cruzados de luz pelo ambiente. Em meio à bruma criada por essa claridade entorpecente surgia um velho elevador cristaleira que uma escada caracol de madeira torneada envolvia como uma serpente. Ambos levavam ao quarto de minha avó.

Após transpor esse ambiente que me aterrorizava e beijar com pequena reverência as mãos gélidas e impessoais da freira que atendera à porta, o quarto de vovó Emília parecia estar em outro lugar. Amplo, com banheiro privativo, claro com janela sobre a ladeira sonolenta de Santa Teresa, mais parecia pertencer a um hotel. Além da cama, de mesa de cabeceira e uma pequena escrivaninha, inútil para a avó analfabeta que eu tinha, havia um pequeno fogareiro sobre uma pia, como uma micro cozinha no interior do compartimento. Ali, salvo pela imagem de um Jesus ainda vivo na parede, estava-se fora dos perigos do convento.

Papai visitava minha avó todos os sábados, quando a levava para passar os finais de semana conosco, para desespero de minha mãe, que nunca gostou dela. Alguns medos me assaltaram toda a vida, como maldições. Quase todos ligados às falas da infância, como as afirmações perversas de minha mãe: “você é louca e má como sua avó... nunca será possível gostar de você... peste como a avó...será ainda pior que ela...”. Eu ouvi essas palavras antes de saber o que significavam e, menos ainda, de entender quem era minha avó paterna. Cheguei a pensar que meu destino inexorável seria tornar-me uma espécie de bruxa maligna, que assombraria gerações. Analfabeta, eu sabia que não seria, e durante algum tempo, achei que a maioria das avós não sabia ler. Sabe-se lá, talvez por medo tenha aprendido a ler sozinha, antes dos cinco anos.

            Meus avós portugueses vieram dar com os costados neste país para fugir da miséria da terrinha. Manuel nascera no Porto, era viúvo e se casou com Emília, pastora de ovelhas próximo a Chaves na Serra da Estrela, em segundas núpcias. Do primeiro casamento havia Aninha, irmã querida mais velha muitos anos que papai, que morreu jovem e tísica. Ele nasceu no Brasil, após a viagem no porão do navio que trouxe a família. Algumas vezes vi os olhos verdes pequenos de Vovó Emília arregalarem-se por entre o rosto coberto de pregas e rugas quando contava do pânico de estar num navio, sem noção do futuro, naquela imensidão do mar, o enjoo, a comida pouca. Ela viveu mais de cem anos, dos quais pelo menos uns dez no mais absoluto delírio.

Quando foi transferida para o asilo São Luiz, continuamos a visitá-la. Foi a única pessoa que afirmo ter morrido de morte morrida. Não tinha doença constatada. Não podia vir do Alzheimer sua loucura, pois era tão ágil que pouco antes de morrer, pulava a janela para a varanda, numa volta à adolescência, achando que fugia de casa para ir ao baile da aldeia. E dançava o Vira na varanda do São Luiz. Ria de um tudo, cantava, dançava e morreu dormindo, como um bebê em morte súbita, explicável apenas por sua velhice. Uma noite, parou de funcionar. Bem que gostaria de parecer-me com ela em sua despedida, indolor e feliz, em seus devaneios.

domingo, 20 de janeiro de 2013

Diálogos Itinerantes

Por Gabriela Costa




Você já teve a sensação de escolher uma palavra não pelo seu significado, mas simplesmente por achá-la bonita? E só depois de um tempo verificar com o Sr. Google, Sr. Houaiss ou até mesmo com o Sr. Aurélio, qual seria o significado ou outras acepções dela? Pois é, quando ouço itinerantes algumas imagens me vêm à mente, são elas: o circo, os ciganos e os mochileiros, e penso imediatamente: - iiiih, essas primeiras impressões não são tão bacanas assim!

Na minha infância, não conheci circos espetaculares como o de Soleil. Nos circos que eu ia, todos os funcionários se revezavam nas atrações e faziam de tudo um pouco. Mais itinerante do que andar de cidade em cidade, era ver que o palhaço do circo era a mesma pessoa que engolia e cuspia fogo! Só mudava de roupa, é claro! Eu achava tudo aquilo fascinante, e já estava decidida: quando crescer, quero trabalhar no circo! TRABALHAR NO CIRCO?! Veja esses jovens se balançando pra lá e pra cá, sem estudo, você acha que eles trabalham? você acha que eles vão ser alguém na vida?, dizia meu avô em tom de final de mundo. E quando terminava o espetáculo, aquele palhaço-que-engole-e-cospe-fogo estava bem lá gritando: algodão doce, cachorro-quente, pizza na pedra! E quando acabavam os comes e bebes, lá estava ele de novo, agora vendendo balões!

Já os ciganos, conheci vários deles. No prédio em que a minha tia-por-parte-de-mãe morava, havia um clã! Eles moravam não em tendas como nos filmes, mas em apartamentos, é claro, e ainda assim viviam se mudando, por motivos até hoje misteriosos. Deles eu não me aproximava muito, pois o meu vô-por-parte-de-pai, aquele que me levava ao circo, me contava muitas histórias de dar medo, ele dizia que os ciganos podiam ler até o nosso pensamento, que tinham pacto com o demo, e quando beijavam a mão de uma menina, podia ter certeza que ficavam os dedos, mas iam-se todos os anéis, e olha que naquela época tudo o que reluzia era ouro mesmo, então todo cuidado era pouco! Sabendo de tudo isso, quando eu descia no elevador com algum deles (que só de olhar sua beleza e elegância já ficava p-a-r-a-l-i-s-a-d-a! estavam sempre super bem vestidos: camisa de seda italiana, calças inglesas com cortes perfeitos e sapatos alemães de finíssimo couro! E o perfume francês, que eu sentia até chegar em minha casa! Meu avô, que já havia sido alfaiate de alta costura, dizia: como podem ter tudo isso se não trabalham?!), eu prendia a respiração e fazia um esforço enorme para não pensar em nada, e o medo deles descobrirem o que eu podia pensar ou estar pensando sobre eles?! E, além disso, não devia olhar nos olhos, pois, as más línguas diziam que eles eram também exímios hipnotizadores! Cruzes!

Coincidência ou não, muitos ciganos trabalhavam no circo! Será que o vô tinha razão?
E pra completar essa trilogia dos itinerantes, eis o mais “leve” deles na escala da itinerância: os mochileiros. Convivi com muitos deles de várias cores, línguas e raças, sonhava em colocar uma mochila nas costas e sair por aí viajando o mundo inteiro, afinal viajar é cultura, não é vô?! Mas com sua cabeça disciplinadamente germânica, iria concordar comigo? viajar, viajar, viajar, e o dinheiro quem vai fabricar?! Dinheiro não é capim, minha filha, não nasce em árvore! Tem que trabalhar, tem que trabalhar, tem que trabalhar, tem que...tem que...tem que...Aff! Não é possível! Quem foi esse infeliz que negou o ócio e transformou em negócio?! eu pensava.

Meu avô, essa figura tão presente nos afetos e cuidados da minha infância, certamente de certeza absolutamente certa achava que em seus ditos estavam os melhores conselhos. No entanto, falava pouco de sua história, guardava numa caixa fotos da sua infância na saudosa Berlim, para onde ele jamais voltou nem a passeio, não tinha tempo pra isso, e diga-se de passagem: nem dinheiro, pois ainda depois de parar de trabalhar e ter sido de tudo um pouco, comerciante, alfaiate, gerente de cinemas, farmacêutico,...agora era aposentado. Isso significava que tinha que economizar, economizar e economizar. Minha avó, que não era boba nem nada, também pensava assim, pois sem o dinheiro que o vô guardava, ela não teria conhecido o mundo inteiro sem gastar nenhum tostão.
Ela sim é que estava certa!
O desejo de voltar a Berlim era grande, mas tudo que ele tinha de lá eram as memórias, já cheias de ausências, é verdade. Mas, afinal, só lembramos mesmo para ressaltar o que é importante encobrir, então acho que não era sinal de caduquice não. Com o vô não era diferente. Naquela época não existia ainda a TV a cabo, então o vô nem acessar o canal DW da TV alemã podia, para matar a saudade. Do alemão, não sabia mais nada, mesmo assim ao ouvir sua língua materna, em algum lugar, aqueles fonemas soavam-lhe como uma doce música, e ele esboçava um suave sorriso no rosto, fazendo cara de que entendia tudo. O combustível que renovava suas lembranças era a assinatura de uma revista que se chamava BERLIM. Na gaveta da mesa do escritório, ele guardava todos aqueles exemplares já amarelados, e o pior é que essa revista já havia deixado de ser publicada há tempos.

Depois de uma viagem para a Alemanha, minha irmã trouxe para o vô um pedaço do muro de Berlim, fresquinho, tinha acabado de ser derrubado. Aquele pedaço de muro serviu como peso de papel para a sua mesa no escritório, onde diariamente lia os seus jornais, e, para não perder o costume, dava umas folheadas em suas revistas BERLIM, já bem desatualizadas.
Aaah, mas aquele pedaço de muro, com várias demãos de pintura bem colorida e inscrições indecifráveis, era muito mais do que tijolo e concreto, era quase um amuleto, um bilhete de viagem que o levava para uma parte de sua história. O cheio que trazia à tona o vazio.

Aquele era um lugar de muitas recordações, quantas e quantas vezes brincou ao lado daquele muro?! quantos bilhetes e cartas passou para amigos e família que ficaram do outro lado?! Segurava firme em sua mão direita aquele pedaço de vida, naquela hora tudo era silêncio, fechava os olhos, suspirava, e podia até sentir o cheiro de sua Berlim, as brincadeiras de rua, as risadas dos amigos, a saudade da família que morava do outro lado, um misto de sensações que o fazia dar a volta ao mundo, ou melhor, no seu mundo, e que de certa forma o fazia lembrar de sua itinerância. Com uma infância nada fácil, logo cedo tratou de dar um sentido à vida. Para escapar dos “campos”, teve que aprender vários ofícios, e também se mudar tantas vezes de cidade e de lugar! Mas quando encontrou seu porto seguro... nunca mais quis fazer outras viagens.


Itinerante rima com errante, e talvez essa segunda imagem é a que tenha ficado mais forte na mente do vô. A única forma de corrigir o erro seria pelo trabalho, entendo...e, por outro lado, como dá trabalho corrigir erros, né?! Esse papo talvez soe muito mais irrelevante do que outra coisa pra você, mas costumo dizer que a mensagem é importante principalmente por causa das pessoas na conversa: eu e eu mesma, e, lógico, as outras que sempre são adicionadas no percurso. E ouvir uma “terceira” pessoa há sempre de fazer bem!


Multidão aguarda passagem para o lado ocidental de Berlim

sábado, 12 de janeiro de 2013

A chegada do meu irmão







Por Larissa Rumiantzeff

Era apenas uma ideia. Pedir um irmãozinho para papai do céu. Bebês são pequenos e fofinhos. Eu imaginava que quando ele nascesse eu poderia segurá-lo e ajudar a cuidar dele. Afinal de contas, quando ele nascesse, eu já teria 7 anos.

A medida que os meses passavam, minha mente fornecia flashes do filme “A dama e o vagabundo” que eu assistia sem parar desde que ganhei. Os desejos de madrugada, os cuidados. A mudança para uma casa maior. A reforma do quarto para o bebê que chegaria. O alvoroço dos adultos, que não viam os filhos mais velhos do casal, depois que o neném chegava.

E então, após a minha festa de aniversário, na segunda feira fui despertada pela minha mãe com a notícia de que não iria para a aula. Voltei a dormir, e quando acordei de novo, minha mãe tinha viajado com o meu padrasto. Não entendi direito o porquê e pra onde, e sempre que perguntava para alguém, me ignoravam, com um aceno impaciente, como se estivessem dispensando uma mosca. Fui mandada para a casa das minhas primas durante o dia, acho que para não fazer tantas perguntas. Antes de ir, contudo, me concederam uma resposta impaciente. Só uma: Ela vai ter o filho hoje. Passou mal depois da festa, por causa do esforço.

Eu tinha me esquecido desse detalhe. A comissão de gente que veio para ajudar a tomar conta dele. A tia do meu padrasto, que se parecia bem com a tia Sarah do filme, menos os gatos. A prima dele, que também foi morar lá em casa. Claro que não seria eu, uma menina de 7 anos recém completados, que ajudaria a cuidar do neném.

Mesmo assim, fiquei louca de alegria. A ideia de irmão pouco a pouco deixava de ser uma ideia. Quando voltei, naquela noite, fui informada de que a minha mãe e o meu irmão estavam bem. Melhor ainda, que no dia seguinte iríamos ao hospital, ver o bebê.

Minha primeira viagem longa de ônibus. Hospital, luzes brancas, cadeiras de plástico, cheiro de remédio. Meu coração não parava de bater, acelerado, com a perspectiva de ver a minha mãe e o meu irmãozinho.

Minha mente voltou para o filme. A dama, incerta, subia as escadas, com medo do que veria.
 Entramos num quarto onde estavam minha mãe, meu padrasto e minha tia-avó. Minha mãe usava o roupão de cetim azul, que eu adorava ficar passando a mão. Ela me mostrou os pontos da cesariana. Mas eu não me aguentava de ansiedade. “Cadê ele?”

                No filme, a dama se aproxima do berço em silêncio, tentando olhar para o bebê, mas não alcança. Na vida real, me aproximo do berço de vidro também. Um adulto chega por trás e levanta a dama, para que ela veja o bebê cujo sono está sendo velado pela mãe. Meu padrasto, todo feliz, levanta o meu irmão do bercinho e leva até mim para o que eu veja. Faz com que eu me sente, e coloca, gentilmente no meu colo. Então, eu tenho uma reação inesperada. Começo a rir.

                Não é um riso histérico, eu tinha consciência disso. No meu nervoso de ver aquela criaturinha tão pequena, tinha medo de que se quebrasse, que acordasse, e ao mesmo tempo desejava que ele abrisse os olhinhos, para que eu pudesse dizer: Sou eu, sua irmã.

Não me cansava de olhar para ele. Para a cabeça, a boquinha. A roupinha de tricô azul. Então, mesmo sem abrir os olhos, ele sente que meus dedos trêmulos passam, levemente, pela sua mãozinha tão pequena (eu não sabia que bebês já tinham unhas tão grandes) abre a mão e se fecha em torno do meu dedo. Comecei a rir mais ainda, com uma vontade estranha de chorar ao mesmo tempo.

Foi ali que eu soube que não ia querer mais sair de perto dele.