terça-feira, 26 de março de 2013

SANTO INÁCIO

Por Cláudia Maria Madureira de Pinho

            Maritacas turbulentas agitam a calma, em revoada, na direção do flamboyant vermelho do jardim. Tudo mais é quieto. O vento não bate, mal se vê a fumaça do fogão a lenha saindo da chaminé da cozinha. A velha fazenda impõe um respeito, como num adro, do alto das escadarias, que os séculos que passam não conseguem arrefecer. Nada mais da autoridade dos antigos senhores do café embora ela, a casa, continue a refleti-la.

            Idalina cozinha no compasso da lenha do fogão das refeições do tempo que já não é, não corre, impregnado de histórias nas paredes, nos móveis, nos cristais, nos porta-retratos. Fotos amarelas dos ancestrais testemunham, fantasmas silentes, poucas transformações. Livros, revistas, mapas se vestem de poeira. Há quanto tempo?

            Uma televisão ligada revela as mudanças, mas a rotina de décadas não se abala com os sons irradiados. Apenas eles destoam no cenário imutável da Fazenda Santo Inácio e espantam, em seu monólogo estridente, as viuvinhas do pátio, por onde circula Idalina, entre a cozinha, a mesa de jantar e as camas por fazer. Seus passos arrastados nos chinelos desfilam frente à enseada de Botafogo pintada na parede da sala de jantar. No centro do mural ergue-se o Corcovado, desprovido de seu Cristo, emoldurando as poucas casas a beira-mar no Rio do século XIX. A força do Império... Quanto tempo de distância a separar a capital da fazenda? Um dia? Mais?

            Nenhuma pressa é possível. A vida cumpre seu tempo natural, indiferente às exigências do século XXI, que não aconteceu em Santo Inácio, como talvez nem o XX. O Brasil do Império e dos descendentes do Visconde do Imbé impõe seu ritmo. Sou uma invasora, ciente da minha audácia, vendo na TV notícias duras, que assustam as viuvinhas, desafiando a paz que não sei desfrutar. As camélias caídas no pátio me censuram. Teria sido eu, com os ruídos provocados, quem as fez cair?

            Timidamente, dirijo-me aos livros, retiro um deles na estante, limpo a poeira com a barra da blusa e tento me adequar. Lembro que pequena sonhava ser fazendeira, pintora ou escritora quando crescesse. Não cresci muito e não sou nada disso. Uma sensação de inutilidade me conduz as mãos ao botão que desliga a TV.

            Nem tudo está perdido. Uma das viuvinhas faz uma visita, pousando no galho que se pendura em camélias frente às janelas do casarão. Abro o livro e mergulho nas mesmas histórias que distraíram os Moraes ao longo de gerações. Machado de Assis me conduz, com palavras melódicas, a um mundo que não pertence.

segunda-feira, 4 de março de 2013

Memórias de um Beta


Por Juliana Castro Cardoso


Sou de uma espécie conhecida, comum. Dizem que vivo sem muitos cuidados, mas o interessante é que vários como eu morrem em pouco tempo, exatamente por falta de tais cuidados.

Não incomodamos muito, apenas pedimos que cuidem da nossa alimentação, que esta seja servida em horários regulares e diurnos, que nosso ambiente seja limpo e tenha temperatura adequada à nossa espécie. Só! Acho que isso não é pedir muito a quem nos quer como companhia, você concorda?

Por falar em companhia, não gostamos de viver com outros peixes e temos personalidade fortíssima. É certo que não falamos, mas sempre damos um jeito de nos comunicar com as outras espécies, até mesmo com os humanos.

Vou contar minha história: Saí de uma feira livre, ensacado, e fui dado de presente a uma pequena menina. Pobre de mim! O que eu poderia dar de alegria àquela criança?

Não falo, não vou ao encontro do dono, não corro atrás de bolas, não sou fofinho como os gatos, não canto como os passarinhos. Pareço um sujeito meio antipático. Mas não é isso, apenas gosto de ficar na minha.

Bem, continuando..., saí de um furdunço, quente pra caramba e fui parar num lugar calmo e muito frio.

“Nossa! Este lugar tem mais a ver com o meu estilo!” Pensei.
O único barulho, ali, era da criança que, por vezes, se ausentava. O lugar era perfeito para um sujeito como eu.

Quem cuidava de mim era uma mulher, que todas as manhãs me cumprimentava:

“Bom dia Marlin! Fez muito frio essa noite? Vou ver no termômetro.”

“Nossa! Coitado, deve estar morrendo de frio. Vou colocar água quente pra você meu querido!”

“E agora? Tá mais animadinho, né?”

​Chic, chic, chic ... Era o barulho do saquinho da ração. Ela sempre o sacudia quando queria me chamar para comer e, depois, colocava, uma a uma na água, as seis bolinhas de ração da minha dieta. Fazia isso duas vezes ao dia.
​Ah! Como era bom...

Estava feliz naquele lugar. Era bem tratado, querido e respeitado. A criança brincava comigo todo dia, mas de longe, sem bater no vidro da minha casa, senão eu podia me assustar, como ensinava a mulher.
Que vidão!!

Eu só não gostava muito quando ela atrasava o horário da segunda refeição. Não faz bem comer muito tarde, dizem que pode dar pesadelos.

“ Marlin, desculpa mas não consegui te dar comida mais cedo."
“Ah! Meu Deus, você não quer comer?! Tá tudo bem?”
“Amor, vem ver o que você acha.”
“Será que tá com fungos?”
“Dizem que eles não duram nada, mas eu cuido tanto dele...”
“ Poxa, a Maricota vai ficar decepcionada se ele morrer.

“Calma, querida! vai ver ele ta só com frio”, dizia o marido.

Que nada, eu não queria era comer àquela hora. Onde já se viu, servir o jantar depois das dez. Não comia e pronto!

Com o tempo ela percebeu que eu não gostava de comer tarde da noite e achou uma graça. Depois, foi descobrindo o jeito que eu me comunicava. Era só colocar a comida na água que eu ia todo faceiro até a superfície. Às vezes, ela fingia que ia colocar minha comida, só para eu me aproximar. Já eu, fingia que acreditava só para chegar bem pertinho dela!
​A gente se dava muito bem!

Até que um dia, no meu aniversário de dois anos, ganhei de presente um castelinho de cimento para enfeitar minha casa. À primeira vista, ele era bem interessante. Lá dentro era escurinho, perfeito pra dormir até mais tarde!

​Gostava tanto que não queria mais sair de lá.
Só que, dali em diante, eu fui ficando meio esquisito, não era mais faceiro como antes.
Ela logo percebeu e comentou com o seu marido:

“Marlin tá tão estranho!"

“Esse castelinho deve estar deixando ele deprimido”, respondeu o marido.

“Então, vamos retirá-lo!” Disse ela.

Mas eu não melhorei e, assim, me despedi daquela vida boa. Parti, deixando saudades...