segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Um mundo à parte






Por Claudia Maria Madureira

A primeira imagem era a do Cristo enorme, martirizado na cruz, tomando toda a altura do pé direito triplo do salão de entrada do convento. A luz vinha difusa, de janelas junto ao teto, soltando feixes cruzados de luz pelo ambiente. Em meio à bruma criada por essa claridade entorpecente surgia um velho elevador cristaleira que uma escada caracol de madeira torneada envolvia como uma serpente. Ambos levavam ao quarto de minha avó.

Após transpor esse ambiente que me aterrorizava e beijar com pequena reverência as mãos gélidas e impessoais da freira que atendera à porta, o quarto de vovó Emília parecia estar em outro lugar. Amplo, com banheiro privativo, claro com janela sobre a ladeira sonolenta de Santa Teresa, mais parecia pertencer a um hotel. Além da cama, de mesa de cabeceira e uma pequena escrivaninha, inútil para a avó analfabeta que eu tinha, havia um pequeno fogareiro sobre uma pia, como uma micro cozinha no interior do compartimento. Ali, salvo pela imagem de um Jesus ainda vivo na parede, estava-se fora dos perigos do convento.

Papai visitava minha avó todos os sábados, quando a levava para passar os finais de semana conosco, para desespero de minha mãe, que nunca gostou dela. Alguns medos me assaltaram toda a vida, como maldições. Quase todos ligados às falas da infância, como as afirmações perversas de minha mãe: “você é louca e má como sua avó... nunca será possível gostar de você... peste como a avó...será ainda pior que ela...”. Eu ouvi essas palavras antes de saber o que significavam e, menos ainda, de entender quem era minha avó paterna. Cheguei a pensar que meu destino inexorável seria tornar-me uma espécie de bruxa maligna, que assombraria gerações. Analfabeta, eu sabia que não seria, e durante algum tempo, achei que a maioria das avós não sabia ler. Sabe-se lá, talvez por medo tenha aprendido a ler sozinha, antes dos cinco anos.

            Meus avós portugueses vieram dar com os costados neste país para fugir da miséria da terrinha. Manuel nascera no Porto, era viúvo e se casou com Emília, pastora de ovelhas próximo a Chaves na Serra da Estrela, em segundas núpcias. Do primeiro casamento havia Aninha, irmã querida mais velha muitos anos que papai, que morreu jovem e tísica. Ele nasceu no Brasil, após a viagem no porão do navio que trouxe a família. Algumas vezes vi os olhos verdes pequenos de Vovó Emília arregalarem-se por entre o rosto coberto de pregas e rugas quando contava do pânico de estar num navio, sem noção do futuro, naquela imensidão do mar, o enjoo, a comida pouca. Ela viveu mais de cem anos, dos quais pelo menos uns dez no mais absoluto delírio.

Quando foi transferida para o asilo São Luiz, continuamos a visitá-la. Foi a única pessoa que afirmo ter morrido de morte morrida. Não tinha doença constatada. Não podia vir do Alzheimer sua loucura, pois era tão ágil que pouco antes de morrer, pulava a janela para a varanda, numa volta à adolescência, achando que fugia de casa para ir ao baile da aldeia. E dançava o Vira na varanda do São Luiz. Ria de um tudo, cantava, dançava e morreu dormindo, como um bebê em morte súbita, explicável apenas por sua velhice. Uma noite, parou de funcionar. Bem que gostaria de parecer-me com ela em sua despedida, indolor e feliz, em seus devaneios.

domingo, 20 de janeiro de 2013

Diálogos Itinerantes

Por Gabriela Costa




Você já teve a sensação de escolher uma palavra não pelo seu significado, mas simplesmente por achá-la bonita? E só depois de um tempo verificar com o Sr. Google, Sr. Houaiss ou até mesmo com o Sr. Aurélio, qual seria o significado ou outras acepções dela? Pois é, quando ouço itinerantes algumas imagens me vêm à mente, são elas: o circo, os ciganos e os mochileiros, e penso imediatamente: - iiiih, essas primeiras impressões não são tão bacanas assim!

Na minha infância, não conheci circos espetaculares como o de Soleil. Nos circos que eu ia, todos os funcionários se revezavam nas atrações e faziam de tudo um pouco. Mais itinerante do que andar de cidade em cidade, era ver que o palhaço do circo era a mesma pessoa que engolia e cuspia fogo! Só mudava de roupa, é claro! Eu achava tudo aquilo fascinante, e já estava decidida: quando crescer, quero trabalhar no circo! TRABALHAR NO CIRCO?! Veja esses jovens se balançando pra lá e pra cá, sem estudo, você acha que eles trabalham? você acha que eles vão ser alguém na vida?, dizia meu avô em tom de final de mundo. E quando terminava o espetáculo, aquele palhaço-que-engole-e-cospe-fogo estava bem lá gritando: algodão doce, cachorro-quente, pizza na pedra! E quando acabavam os comes e bebes, lá estava ele de novo, agora vendendo balões!

Já os ciganos, conheci vários deles. No prédio em que a minha tia-por-parte-de-mãe morava, havia um clã! Eles moravam não em tendas como nos filmes, mas em apartamentos, é claro, e ainda assim viviam se mudando, por motivos até hoje misteriosos. Deles eu não me aproximava muito, pois o meu vô-por-parte-de-pai, aquele que me levava ao circo, me contava muitas histórias de dar medo, ele dizia que os ciganos podiam ler até o nosso pensamento, que tinham pacto com o demo, e quando beijavam a mão de uma menina, podia ter certeza que ficavam os dedos, mas iam-se todos os anéis, e olha que naquela época tudo o que reluzia era ouro mesmo, então todo cuidado era pouco! Sabendo de tudo isso, quando eu descia no elevador com algum deles (que só de olhar sua beleza e elegância já ficava p-a-r-a-l-i-s-a-d-a! estavam sempre super bem vestidos: camisa de seda italiana, calças inglesas com cortes perfeitos e sapatos alemães de finíssimo couro! E o perfume francês, que eu sentia até chegar em minha casa! Meu avô, que já havia sido alfaiate de alta costura, dizia: como podem ter tudo isso se não trabalham?!), eu prendia a respiração e fazia um esforço enorme para não pensar em nada, e o medo deles descobrirem o que eu podia pensar ou estar pensando sobre eles?! E, além disso, não devia olhar nos olhos, pois, as más línguas diziam que eles eram também exímios hipnotizadores! Cruzes!

Coincidência ou não, muitos ciganos trabalhavam no circo! Será que o vô tinha razão?
E pra completar essa trilogia dos itinerantes, eis o mais “leve” deles na escala da itinerância: os mochileiros. Convivi com muitos deles de várias cores, línguas e raças, sonhava em colocar uma mochila nas costas e sair por aí viajando o mundo inteiro, afinal viajar é cultura, não é vô?! Mas com sua cabeça disciplinadamente germânica, iria concordar comigo? viajar, viajar, viajar, e o dinheiro quem vai fabricar?! Dinheiro não é capim, minha filha, não nasce em árvore! Tem que trabalhar, tem que trabalhar, tem que trabalhar, tem que...tem que...tem que...Aff! Não é possível! Quem foi esse infeliz que negou o ócio e transformou em negócio?! eu pensava.

Meu avô, essa figura tão presente nos afetos e cuidados da minha infância, certamente de certeza absolutamente certa achava que em seus ditos estavam os melhores conselhos. No entanto, falava pouco de sua história, guardava numa caixa fotos da sua infância na saudosa Berlim, para onde ele jamais voltou nem a passeio, não tinha tempo pra isso, e diga-se de passagem: nem dinheiro, pois ainda depois de parar de trabalhar e ter sido de tudo um pouco, comerciante, alfaiate, gerente de cinemas, farmacêutico,...agora era aposentado. Isso significava que tinha que economizar, economizar e economizar. Minha avó, que não era boba nem nada, também pensava assim, pois sem o dinheiro que o vô guardava, ela não teria conhecido o mundo inteiro sem gastar nenhum tostão.
Ela sim é que estava certa!
O desejo de voltar a Berlim era grande, mas tudo que ele tinha de lá eram as memórias, já cheias de ausências, é verdade. Mas, afinal, só lembramos mesmo para ressaltar o que é importante encobrir, então acho que não era sinal de caduquice não. Com o vô não era diferente. Naquela época não existia ainda a TV a cabo, então o vô nem acessar o canal DW da TV alemã podia, para matar a saudade. Do alemão, não sabia mais nada, mesmo assim ao ouvir sua língua materna, em algum lugar, aqueles fonemas soavam-lhe como uma doce música, e ele esboçava um suave sorriso no rosto, fazendo cara de que entendia tudo. O combustível que renovava suas lembranças era a assinatura de uma revista que se chamava BERLIM. Na gaveta da mesa do escritório, ele guardava todos aqueles exemplares já amarelados, e o pior é que essa revista já havia deixado de ser publicada há tempos.

Depois de uma viagem para a Alemanha, minha irmã trouxe para o vô um pedaço do muro de Berlim, fresquinho, tinha acabado de ser derrubado. Aquele pedaço de muro serviu como peso de papel para a sua mesa no escritório, onde diariamente lia os seus jornais, e, para não perder o costume, dava umas folheadas em suas revistas BERLIM, já bem desatualizadas.
Aaah, mas aquele pedaço de muro, com várias demãos de pintura bem colorida e inscrições indecifráveis, era muito mais do que tijolo e concreto, era quase um amuleto, um bilhete de viagem que o levava para uma parte de sua história. O cheio que trazia à tona o vazio.

Aquele era um lugar de muitas recordações, quantas e quantas vezes brincou ao lado daquele muro?! quantos bilhetes e cartas passou para amigos e família que ficaram do outro lado?! Segurava firme em sua mão direita aquele pedaço de vida, naquela hora tudo era silêncio, fechava os olhos, suspirava, e podia até sentir o cheiro de sua Berlim, as brincadeiras de rua, as risadas dos amigos, a saudade da família que morava do outro lado, um misto de sensações que o fazia dar a volta ao mundo, ou melhor, no seu mundo, e que de certa forma o fazia lembrar de sua itinerância. Com uma infância nada fácil, logo cedo tratou de dar um sentido à vida. Para escapar dos “campos”, teve que aprender vários ofícios, e também se mudar tantas vezes de cidade e de lugar! Mas quando encontrou seu porto seguro... nunca mais quis fazer outras viagens.


Itinerante rima com errante, e talvez essa segunda imagem é a que tenha ficado mais forte na mente do vô. A única forma de corrigir o erro seria pelo trabalho, entendo...e, por outro lado, como dá trabalho corrigir erros, né?! Esse papo talvez soe muito mais irrelevante do que outra coisa pra você, mas costumo dizer que a mensagem é importante principalmente por causa das pessoas na conversa: eu e eu mesma, e, lógico, as outras que sempre são adicionadas no percurso. E ouvir uma “terceira” pessoa há sempre de fazer bem!


Multidão aguarda passagem para o lado ocidental de Berlim

sábado, 12 de janeiro de 2013

A chegada do meu irmão







Por Larissa Rumiantzeff

Era apenas uma ideia. Pedir um irmãozinho para papai do céu. Bebês são pequenos e fofinhos. Eu imaginava que quando ele nascesse eu poderia segurá-lo e ajudar a cuidar dele. Afinal de contas, quando ele nascesse, eu já teria 7 anos.

A medida que os meses passavam, minha mente fornecia flashes do filme “A dama e o vagabundo” que eu assistia sem parar desde que ganhei. Os desejos de madrugada, os cuidados. A mudança para uma casa maior. A reforma do quarto para o bebê que chegaria. O alvoroço dos adultos, que não viam os filhos mais velhos do casal, depois que o neném chegava.

E então, após a minha festa de aniversário, na segunda feira fui despertada pela minha mãe com a notícia de que não iria para a aula. Voltei a dormir, e quando acordei de novo, minha mãe tinha viajado com o meu padrasto. Não entendi direito o porquê e pra onde, e sempre que perguntava para alguém, me ignoravam, com um aceno impaciente, como se estivessem dispensando uma mosca. Fui mandada para a casa das minhas primas durante o dia, acho que para não fazer tantas perguntas. Antes de ir, contudo, me concederam uma resposta impaciente. Só uma: Ela vai ter o filho hoje. Passou mal depois da festa, por causa do esforço.

Eu tinha me esquecido desse detalhe. A comissão de gente que veio para ajudar a tomar conta dele. A tia do meu padrasto, que se parecia bem com a tia Sarah do filme, menos os gatos. A prima dele, que também foi morar lá em casa. Claro que não seria eu, uma menina de 7 anos recém completados, que ajudaria a cuidar do neném.

Mesmo assim, fiquei louca de alegria. A ideia de irmão pouco a pouco deixava de ser uma ideia. Quando voltei, naquela noite, fui informada de que a minha mãe e o meu irmão estavam bem. Melhor ainda, que no dia seguinte iríamos ao hospital, ver o bebê.

Minha primeira viagem longa de ônibus. Hospital, luzes brancas, cadeiras de plástico, cheiro de remédio. Meu coração não parava de bater, acelerado, com a perspectiva de ver a minha mãe e o meu irmãozinho.

Minha mente voltou para o filme. A dama, incerta, subia as escadas, com medo do que veria.
 Entramos num quarto onde estavam minha mãe, meu padrasto e minha tia-avó. Minha mãe usava o roupão de cetim azul, que eu adorava ficar passando a mão. Ela me mostrou os pontos da cesariana. Mas eu não me aguentava de ansiedade. “Cadê ele?”

                No filme, a dama se aproxima do berço em silêncio, tentando olhar para o bebê, mas não alcança. Na vida real, me aproximo do berço de vidro também. Um adulto chega por trás e levanta a dama, para que ela veja o bebê cujo sono está sendo velado pela mãe. Meu padrasto, todo feliz, levanta o meu irmão do bercinho e leva até mim para o que eu veja. Faz com que eu me sente, e coloca, gentilmente no meu colo. Então, eu tenho uma reação inesperada. Começo a rir.

                Não é um riso histérico, eu tinha consciência disso. No meu nervoso de ver aquela criaturinha tão pequena, tinha medo de que se quebrasse, que acordasse, e ao mesmo tempo desejava que ele abrisse os olhinhos, para que eu pudesse dizer: Sou eu, sua irmã.

Não me cansava de olhar para ele. Para a cabeça, a boquinha. A roupinha de tricô azul. Então, mesmo sem abrir os olhos, ele sente que meus dedos trêmulos passam, levemente, pela sua mãozinha tão pequena (eu não sabia que bebês já tinham unhas tão grandes) abre a mão e se fecha em torno do meu dedo. Comecei a rir mais ainda, com uma vontade estranha de chorar ao mesmo tempo.

Foi ali que eu soube que não ia querer mais sair de perto dele.




quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Apresentação

Era uma vez um curso de escrita. E uma turma de aspirantes a escritores. O curso de escrita tinha duração de apenas 2 meses. Porém, dois meses logo se tornaram 4, um curso emendou no outro, e a turma (ou boa parte dela) continuou a querer escrever mais e mais. 

Comichão. Uma coceira irresistível, incontrolável, visceral. Sensação Cutânea desconfortável que leva o indivíduo a coçar ou friccionar a pele. De acordo com o Houaiss, é também um desejo veemente, uma tentação.

Este blog nada mais é do que uma necessidade, um desejo, uma tentação incontrolável de continuar escrevendo, e de reunir nossas memórias e fantasias. Sejam bem-vindos à nossa gaveta.