domingo, 20 de janeiro de 2013

Diálogos Itinerantes

Por Gabriela Costa




Você já teve a sensação de escolher uma palavra não pelo seu significado, mas simplesmente por achá-la bonita? E só depois de um tempo verificar com o Sr. Google, Sr. Houaiss ou até mesmo com o Sr. Aurélio, qual seria o significado ou outras acepções dela? Pois é, quando ouço itinerantes algumas imagens me vêm à mente, são elas: o circo, os ciganos e os mochileiros, e penso imediatamente: - iiiih, essas primeiras impressões não são tão bacanas assim!

Na minha infância, não conheci circos espetaculares como o de Soleil. Nos circos que eu ia, todos os funcionários se revezavam nas atrações e faziam de tudo um pouco. Mais itinerante do que andar de cidade em cidade, era ver que o palhaço do circo era a mesma pessoa que engolia e cuspia fogo! Só mudava de roupa, é claro! Eu achava tudo aquilo fascinante, e já estava decidida: quando crescer, quero trabalhar no circo! TRABALHAR NO CIRCO?! Veja esses jovens se balançando pra lá e pra cá, sem estudo, você acha que eles trabalham? você acha que eles vão ser alguém na vida?, dizia meu avô em tom de final de mundo. E quando terminava o espetáculo, aquele palhaço-que-engole-e-cospe-fogo estava bem lá gritando: algodão doce, cachorro-quente, pizza na pedra! E quando acabavam os comes e bebes, lá estava ele de novo, agora vendendo balões!

Já os ciganos, conheci vários deles. No prédio em que a minha tia-por-parte-de-mãe morava, havia um clã! Eles moravam não em tendas como nos filmes, mas em apartamentos, é claro, e ainda assim viviam se mudando, por motivos até hoje misteriosos. Deles eu não me aproximava muito, pois o meu vô-por-parte-de-pai, aquele que me levava ao circo, me contava muitas histórias de dar medo, ele dizia que os ciganos podiam ler até o nosso pensamento, que tinham pacto com o demo, e quando beijavam a mão de uma menina, podia ter certeza que ficavam os dedos, mas iam-se todos os anéis, e olha que naquela época tudo o que reluzia era ouro mesmo, então todo cuidado era pouco! Sabendo de tudo isso, quando eu descia no elevador com algum deles (que só de olhar sua beleza e elegância já ficava p-a-r-a-l-i-s-a-d-a! estavam sempre super bem vestidos: camisa de seda italiana, calças inglesas com cortes perfeitos e sapatos alemães de finíssimo couro! E o perfume francês, que eu sentia até chegar em minha casa! Meu avô, que já havia sido alfaiate de alta costura, dizia: como podem ter tudo isso se não trabalham?!), eu prendia a respiração e fazia um esforço enorme para não pensar em nada, e o medo deles descobrirem o que eu podia pensar ou estar pensando sobre eles?! E, além disso, não devia olhar nos olhos, pois, as más línguas diziam que eles eram também exímios hipnotizadores! Cruzes!

Coincidência ou não, muitos ciganos trabalhavam no circo! Será que o vô tinha razão?
E pra completar essa trilogia dos itinerantes, eis o mais “leve” deles na escala da itinerância: os mochileiros. Convivi com muitos deles de várias cores, línguas e raças, sonhava em colocar uma mochila nas costas e sair por aí viajando o mundo inteiro, afinal viajar é cultura, não é vô?! Mas com sua cabeça disciplinadamente germânica, iria concordar comigo? viajar, viajar, viajar, e o dinheiro quem vai fabricar?! Dinheiro não é capim, minha filha, não nasce em árvore! Tem que trabalhar, tem que trabalhar, tem que trabalhar, tem que...tem que...tem que...Aff! Não é possível! Quem foi esse infeliz que negou o ócio e transformou em negócio?! eu pensava.

Meu avô, essa figura tão presente nos afetos e cuidados da minha infância, certamente de certeza absolutamente certa achava que em seus ditos estavam os melhores conselhos. No entanto, falava pouco de sua história, guardava numa caixa fotos da sua infância na saudosa Berlim, para onde ele jamais voltou nem a passeio, não tinha tempo pra isso, e diga-se de passagem: nem dinheiro, pois ainda depois de parar de trabalhar e ter sido de tudo um pouco, comerciante, alfaiate, gerente de cinemas, farmacêutico,...agora era aposentado. Isso significava que tinha que economizar, economizar e economizar. Minha avó, que não era boba nem nada, também pensava assim, pois sem o dinheiro que o vô guardava, ela não teria conhecido o mundo inteiro sem gastar nenhum tostão.
Ela sim é que estava certa!
O desejo de voltar a Berlim era grande, mas tudo que ele tinha de lá eram as memórias, já cheias de ausências, é verdade. Mas, afinal, só lembramos mesmo para ressaltar o que é importante encobrir, então acho que não era sinal de caduquice não. Com o vô não era diferente. Naquela época não existia ainda a TV a cabo, então o vô nem acessar o canal DW da TV alemã podia, para matar a saudade. Do alemão, não sabia mais nada, mesmo assim ao ouvir sua língua materna, em algum lugar, aqueles fonemas soavam-lhe como uma doce música, e ele esboçava um suave sorriso no rosto, fazendo cara de que entendia tudo. O combustível que renovava suas lembranças era a assinatura de uma revista que se chamava BERLIM. Na gaveta da mesa do escritório, ele guardava todos aqueles exemplares já amarelados, e o pior é que essa revista já havia deixado de ser publicada há tempos.

Depois de uma viagem para a Alemanha, minha irmã trouxe para o vô um pedaço do muro de Berlim, fresquinho, tinha acabado de ser derrubado. Aquele pedaço de muro serviu como peso de papel para a sua mesa no escritório, onde diariamente lia os seus jornais, e, para não perder o costume, dava umas folheadas em suas revistas BERLIM, já bem desatualizadas.
Aaah, mas aquele pedaço de muro, com várias demãos de pintura bem colorida e inscrições indecifráveis, era muito mais do que tijolo e concreto, era quase um amuleto, um bilhete de viagem que o levava para uma parte de sua história. O cheio que trazia à tona o vazio.

Aquele era um lugar de muitas recordações, quantas e quantas vezes brincou ao lado daquele muro?! quantos bilhetes e cartas passou para amigos e família que ficaram do outro lado?! Segurava firme em sua mão direita aquele pedaço de vida, naquela hora tudo era silêncio, fechava os olhos, suspirava, e podia até sentir o cheiro de sua Berlim, as brincadeiras de rua, as risadas dos amigos, a saudade da família que morava do outro lado, um misto de sensações que o fazia dar a volta ao mundo, ou melhor, no seu mundo, e que de certa forma o fazia lembrar de sua itinerância. Com uma infância nada fácil, logo cedo tratou de dar um sentido à vida. Para escapar dos “campos”, teve que aprender vários ofícios, e também se mudar tantas vezes de cidade e de lugar! Mas quando encontrou seu porto seguro... nunca mais quis fazer outras viagens.


Itinerante rima com errante, e talvez essa segunda imagem é a que tenha ficado mais forte na mente do vô. A única forma de corrigir o erro seria pelo trabalho, entendo...e, por outro lado, como dá trabalho corrigir erros, né?! Esse papo talvez soe muito mais irrelevante do que outra coisa pra você, mas costumo dizer que a mensagem é importante principalmente por causa das pessoas na conversa: eu e eu mesma, e, lógico, as outras que sempre são adicionadas no percurso. E ouvir uma “terceira” pessoa há sempre de fazer bem!


Multidão aguarda passagem para o lado ocidental de Berlim

3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Espero continuação dos seus diálogos itinerantes, Gabriela! Muito bom!
    Beijo,
    Edna

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  3. eu tinha digitado errado, por isso excluí o 1o comentário.
    Beijo, Gabi!

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