Por Claudia Maria Madureira
A primeira imagem era a do Cristo enorme, martirizado na
cruz, tomando toda a altura do pé direito triplo do salão de entrada do
convento. A luz vinha difusa, de janelas junto ao teto, soltando feixes
cruzados de luz pelo ambiente. Em meio à bruma criada por essa claridade entorpecente surgia um velho elevador cristaleira que uma escada caracol de
madeira torneada envolvia como uma serpente. Ambos levavam ao quarto de minha
avó.
Após transpor esse ambiente que me aterrorizava e beijar
com pequena reverência as mãos gélidas e impessoais da freira que atendera à
porta, o quarto de vovó Emília parecia estar em outro lugar. Amplo, com
banheiro privativo, claro com janela sobre a ladeira sonolenta de Santa Teresa,
mais parecia pertencer a um hotel. Além da cama, de mesa de cabeceira e uma
pequena escrivaninha, inútil para a avó analfabeta que eu tinha, havia um
pequeno fogareiro sobre uma pia, como uma micro cozinha no interior do
compartimento. Ali, salvo pela imagem de um Jesus ainda vivo na parede,
estava-se fora dos perigos do convento.
Papai visitava minha avó todos os sábados, quando a
levava para passar os finais de semana conosco, para desespero de minha mãe,
que nunca gostou dela. Alguns medos me assaltaram toda a vida, como maldições.
Quase todos ligados às falas da infância, como as afirmações perversas de minha
mãe: “você é louca e má como sua avó... nunca será possível gostar de você... peste
como a avó...será ainda pior que ela...”. Eu ouvi essas palavras antes de saber
o que significavam e, menos ainda, de entender quem era minha avó paterna.
Cheguei a pensar que meu destino inexorável seria tornar-me uma espécie de
bruxa maligna, que assombraria gerações. Analfabeta, eu sabia que não seria, e
durante algum tempo, achei que a maioria das avós não sabia ler. Sabe-se lá,
talvez por medo tenha aprendido a ler sozinha, antes dos cinco anos.
Meus avós portugueses vieram dar com
os costados neste país para fugir da miséria da terrinha. Manuel nascera no
Porto, era viúvo e se casou com Emília, pastora de ovelhas próximo a Chaves na
Serra da Estrela, em segundas núpcias. Do
primeiro casamento havia Aninha, irmã querida mais velha muitos anos que papai,
que morreu jovem e tísica. Ele nasceu no Brasil, após a viagem no porão do
navio que trouxe a família. Algumas vezes vi os olhos verdes pequenos de Vovó
Emília arregalarem-se por entre o rosto coberto de pregas e rugas quando
contava do pânico de estar num navio, sem noção do futuro, naquela imensidão do
mar, o enjoo, a comida pouca. Ela viveu mais de cem anos, dos quais pelo menos
uns dez no mais absoluto delírio.
Quando foi transferida para o asilo São Luiz, continuamos
a visitá-la. Foi a única pessoa que afirmo ter morrido de morte morrida. Não
tinha doença constatada. Não podia vir do Alzheimer sua loucura, pois era tão
ágil que pouco antes de morrer, pulava a janela para a varanda, numa volta à
adolescência, achando que fugia de casa para ir ao baile da aldeia. E dançava o
Vira na varanda do São Luiz. Ria de um tudo, cantava, dançava e morreu
dormindo, como um bebê em morte súbita, explicável apenas por sua velhice. Uma
noite, parou de funcionar. Bem que gostaria de parecer-me com ela em sua
despedida, indolor e feliz, em seus devaneios.
Tem pessoas que deixam lembranças tão fortes, né?
ResponderExcluirForte essa história, bonita.
Beijo,
Edna