sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Viagens

Por Edna Bueno




Foi em 1984, mês de agosto, pouco mais de um ano da morte de meu pai. Férias. Queria andar por larguezas, brisa e asa, e o Pantanal Matogrossense me pareceu o destino acertado. Como bilhete de viagem, a vontade de estar só; por aí me esgueirei.

Minha mãe sugeriu uma excursão de trem. Numa excursão ninguém fica só, argumentei, mas aquele lugar, ela disse, jacarés e feras, você sabe... Acabei concordando; sempre poderia falar pouco, deixar os olhos na paisagem. Cerrado, terra vermelha e planaltos, árvores baixas, retorcidas, o movimento do trem.

Partimos da Estação Leopoldina, do Rio à cidade de São Paulo. Trem noturno. Na plataforma, distribuídas as cabines pelos excursionistas, ganhei a companhia de outra moça, olhando assim de idade parecida. Eu levava uma mala grande; a moça, uma pequena.
Parênteses: minha mãe, que trabalhava com turismo, tinha prometido cabine individual, quarto individual nos hotéis, e eu me senti fulminada nessa partida.

O trem luxuoso para São Paulo servia café da manhã em um vagão com mesas enfeitadas por vasos de flores amarelas, as toalhas brancas. O trem pelo Mato Grosso era mambembe, toalhas coloridas nas mesas do vagão restaurante. Eu e a moça, mais um garoto surfista que certamente estava ali na onda errada, como eu, pretensamente sozinho pelo Pantanal, mais um senhor aposentado: essa minha turma. Com eles repartia mesa e conversas, festejava paisagem e espantos. Quatro pessoas se encontravam, encontros para lá de improváveis. O resto da excursão era de casais, gente mais velha.

Trilhos na ponte sobre o rio Paraná, entre São Paulo e Mato Grosso do Sul. Lindo o sol vermelhão que se punha do outro lado.

Em Corumbá, a temperatura ia do mais quente ao mais frio de um dia para o outro. Na mala, roupas para todo clima, cores combinando. Tênis, sandália, cinto para um toque diferente, lenço para enrolar em volta do pescoço, brincos para variar, pulseiras, montes de etceteras. A mala da minha companheira, pequena. Meus cílios com rímel, o rosto dela sem pintura. Simplicidade impressionante. Um dia conversamos sobre idade e profissão, rimos: as duas de Escorpião, primeiro decanato, ela do final de outubro e eu do começo de novembro, nascidas no mesmo ano, oito dias de diferença; ela arquiteta, eu engenheira. Então, parecenças.
Também pegamos alguns ônibus, pequenos trajetos. E pusemos os pés numa cidadezinha fronteira da Bolívia, onde comprei uma mala de pano, estampa andina, e um poncho. De volta ao hotel, separei o que entendi realmente precisar e coloquei na mala nova. A antiga, despachei para meu endereço no Rio. Veio de avião, pela Varig, trazendo o excesso. E ficou tudo mais fácil, mais leve.

Num trajeto de ônibus conversamos sobre família, pai e mãe. Eu, filha do segundo casamento do meu pai; ela, criada pela mãe separada. Falamos de irmãos. Outro dia, ao sairmos para jantar, a carteira de identidade dela caiu, peguei, entreguei, peraí, esse sobrenome: seu pai irmão da primeira mulher do meu pai, ela prima irmã dos meus irmãos – os chamados meio-irmãos, mas irmãos nunca são pela metade.

Tal espanto dividimos com o resto da turma, o garoto surfista e o senhor aposentado. Pessoas, como fugir delas? O Pantanal, os jacarés, piranhas, tuiuiús, as árvores, o sol vermelho do Mato Grosso, as pessoas. O museu em Campo Grande. O templo budista em Baurú, na volta; o circo em Baurú, o elefante chamado César.

Encontrei minha companheira de viagem no Rio umas poucas vezes, prolongando uma amizade de viajantes. Reservada, meio que misteriosa; simples. Fomos à praia com o amigo surfista. Fotos, risos, água de coco. Ela foi ao lançamento de uma antologia de poemas de que participei com amigos de uma oficina; na antiga livraria Dazibao, Visconde de Pirajá, Ipanema. Pediu para não contar para meus irmãos quem era.

Anos atrás a encontrei por acaso. Parou de carro com uma amiga diante do restaurante A Floresta, na Floresta da Tijuca. Fabio, meu filho, era pequeno e brincava; eu me ocupava dele enquanto o Rui, marido, tocava violão num canto do estacionamento. Um de nossos passeios preferidos, casal com criança, eu que já havia largado a engenharia e andava me enveredando pela literatura. Sim, eu mais leve e feliz, mas ainda com blush e rímel. Ela não, igual: rosto lavado, voz grave e bonita. Bom vê-la; depois o carro partindo, entrando na paisagem de neblina, ela acenando.

Essa foi minha única viagem em excursão; tudo programado, mas – viva! – surpreendendo. Talvez isso faça parte d
as viagens: lugares, pessoas, surpresas
Hoje tenho uma grande vontade de me aventurar pelas terras das Mil e uma noites. Ou por Santa Rita da Jacutinga, doida para conhecer as cachoeiras do lugar. Talvez pela sonoridade do nome, Jacutinga, bom de falar. Que bilhetes para esses destinos? Que trilhos? Que descaminhos? A mala, sei, aprendi: simples e leve.


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5 comentários:

  1. Que leitura gostosa, Edna. Viajei com você, senti o vento nos cabelos e o sol do Pantanal. Bjs

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  2. Legal, Bárbara! Depois dessa viagem, nunca mais mala pesada e excessos; agora viajo com asas e sonhos e mala simples. Bjos!

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  3. Ah! Da próxima, posso ir também? Adorei essa sua viagem. Sozinha, conhecer os novos, repensar-se, Trem não me dá enjoo. Também gostei do Jacutinga! Tem ritmo!
    ih! Esqueci de falar do texto. Bem, acho que o sentimento diz mais que qualquer palavra. Me deu vontade de sair agora, com a mala bem simples.

    Adorei!

    Beijos, Juliana Cardoso

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  4. Uma delícia! Pareceu-me ouvi-la. Saudades...

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